quinta-feira, outubro 18, 2007

Minhas memórias póstumas

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.”
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi um divisor de águas na carreira de Machado de Assis. Brás Cubas, já no início do livro, levanta a questão em que se definia não como um autor defunto, mas sim um defunto autor. A diferença de minhas memórias para as de Brás Cubas, é que no meu caso, não me enquadro em nenhum desses dois pólos por um único motivo; Ainda não morri!!! Mas tenho hoje a visão privilegiada de quem olha por fora, por fora do meu corpo, e por ainda poder ouvir pulsar meu peito, aproveito para escrever minhas últimas palavras.
Primeiramente, devo me apresentar. Sou uma menina de 5 anos, pobre e negra, o que deveria definir somente de onde vim, porém no Brasil, isso já define onde vou chegar. Neste momento vejo meu corpo deitado em uma cama de UTI, com minha mãe a chorar ao meu lado, ouvindo as novas noticias dos médicos. Mas apesar de tudo, estou feliz, afinal, já estou na UTI. Minhas memórias se baseiam em como cheguei aqui. Na sexta-feira passada (vale lembrar: dia das crianças) eu estava jogada há dois dias em uma maca de um corredor que nada se parecia com um play-ground, uma piscina ou um parque, que era onde eu realmente, deveria estar. Eu via minha mãe a chorar uma dor desesperada, meu pai se perder entre a dor da filha em coma, e a dor da esposa a perder os sentidos. Via os médicos se segurando em pé após 32 horas de plantão, engajados em encontrar uma UTI que me aceitasse. Dois dias tentando uma vaga em uma UTI no estado de São Paulo, dois dias a menos de chance da minha sobrevivência. Até que meu pai, em uma última tentativa desesperada, bateu na porta da casa do prefeito, faltando 10 minutos pra meia noite. O prefeito obviamente, não atendeu, porém conseguiu falar com a esposa do prefeito, que fez somente uma ligação. UMA ÚNICA LIGAÇÃO, que dispensava todas as ligações daqueles dois dias, e após 3 horas, eu estava em uma UTI móvel a caminho de uma chance de sobreviver.
Palmas à 1ª dama de Ubatuba, que se comoveu com meu caso e se dispôs à me ajudar, porém invoco todas as vaias deste mundo, ao marido dela, e à todos os políticos deste país, que ao invés de repassarem a totalidade das receitas da CPMF para a saúde pública deste país, cumprindo sua finalidade inicial, barganham cargos, salários e mensalões para a aprovação desta conta bilionária que todos nós pagamos absolutamente em vão. Se este imposto cumprisse com sua obrigação, certamente eu não precisaria depender da boa vontade de mulheres de prefeitos, e certamente, milhões de vidas de pessoas que não conseguiram o endereço do prefeito teriam sido salvas.
Uma outra diferença marcante entre minhas memórias e as memórias de Brás Cubas, é que a de Brás Cubas é uma ficção, um romance escrito para ilustrar um malandro brasileiro, e as minhas memórias, são realidades escritas por causa dos malandros brasileiros.

Claudino Velloso Borges

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